INDICADORES DE TENDÊNCIA CIMILHO (80): Muito além do R$ 1,99: o desafio chinês no mercado de milho
28/04/2016 09:49:13



Rubens Augusto de Miranda
Pesquisador da área de economia agrícola da Embrapa Milho e Sorgo

No decorrer dos últimos anos, tem-se discutido muito sobre o momento no qual a China seguirá o mesmo caminho percorrido na cultura da soja e se tornará, também, o maior comprador global de milho. Infelizmente a realidade é cruel com os que fazem previsões e há indícios de que um caminho reverso ao esperado pode ocorrer, pelo menos no curto prazo.

Anualmente, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) apresenta um relatório com projeções de comércio mundial do agronegócio para cada ano da década seguinte. No documento lançado em 2014, havia a expectativa de que a China ultrapassaria o Japão como maior importador de milho, em 2020/21, e chegaria a 22 milhões de toneladas adquiridas em 2023/24. Dois anos depois, os números passaram a ser bem mais modestos. No relatório de 2016, a China na próxima década, em momento, algum aparece entre os cinco maiores importadores. Além disso, a projeção para 2023/24 foi reduzida para 5,6 milhões de toneladas e poderá chegar ao máximo de 6,3 milhões de toneladas em 2025/26.

Se não bastassem as alterações substanciais, as projeções podem estar muito aquém do que pode acontecer de fato. Isso porque existe a possibilidade de a China passar a exportar milho massivamente no curto prazo, o que certamente chacoalharia o mercado mundial dessa commodity.

O que ocorreu para que o cenário futuro tenha mudado tanto em apenas dois anos? Na agricultura, em razão da imprevisibilidade do clima, grandes mudanças podem ocorrer de um ano para outro, vide a quebra da safra de milho dos EUA em 2012/13. Contudo, grandes mudanças em projeções de longo prazo refletem questões mais complexas e que não são transitórias.

Muita coisa mudou nos últimos dois anos, e não estamos falando apenas dos indícios de desaceleração da economia chinesa. A questão é muito mais intrincada. O problema é que a China se encontra na encruzilhada que todo país emergente em processo de urbanização passa em algum momento, que é o êxodo rural acelerado e a necessidade de modernização da agricultura para aumentar a produtividade e contrabalançar a diminuição da mão de obra no campo.

Nas últimas décadas, o país obteve taxas de crescimento econômico de dois dígitos, mas a riqueza desse boom ainda está circunscrita aos centros urbanos, marginalizando centenas de milhões de pessoas de usufruírem do bem-estar da emergente sociedade de consumo. Essas condições somadas a governos menos preocupados com a questão rural poderiam resultar numa nova Grande Marcha, só que, agora, em direção às grandes cidades.

Obviamente a ida para a cidade não é garantia de riqueza. Na verdade, o que provavelmente os espera é uma relação de trabalho altamente exploradora e mal remunerada. Mas a alternativa é a certeza da pobreza rural.

Vamos olhar o tamanho do problema chinês. Atualmente, a estrutura agrária na China é extremamente pulverizada. Dados censitários indicam que a maior parte da produção agrícola chinesa é cultivada em mais de 200 milhões de pequenas propriedades. Em 2010, o tamanho médio de uma propriedade agrícola chinesa era de 0,6 hectares. Fazendo um cálculo rápido sobre os 37,1 milhões de hectares plantados com milho na safra 2014/15, teríamos algo em torno de 61,8 milhões de pequenas propriedades somente para o cereal.

Há o entendimento de que a modernização da agricultura na China só será viável com a concentração das propriedades rurais em unidades maiores. Dando atenção a isso, o Décimo Terceiro Plano Quinquenal (2016-20) será focado na reforma agrícola para estimular a produção em grandes propriedades. Zou Lixing, dirigente do Banco de Desenvolvimento Chinês, recentemente disse que o objetivo é que, em 30 anos, 85% da produção rural seja provida por 7% da força de trabalho. A título de comparação, nos EUA, apenas 1,5% da força de trabalho respondem por praticamente toda a produção agropecuária.

Desde a fundação da República Popular da China, em 1949, o país passou por mudanças profundas na sua estrutura agrária. Após a revolução, o novo governo confiscou as terras dos latifundiários e camponeses ricos e as distribuiu para famílias de agricultores em bases igualitárias. Sob influência do sistema soviético, na década de 1950, a China iniciou o processo de coletivização da agricultura, no qual as famílias de agricultores tiveram que entregar as suas terras para uma entidade coletiva. Posteriormente, o Sistema de Responsabilidade Familiar garantiu a ampliação dos direitos dos produtores em relação ao uso da terra, apesar de manter a posse coletiva da terra. Em 29 de agosto de 2002, após anos de elaboração e deliberação, foi aprovada a Lei de Contratação da Terra Rural. Levada a efeito a partir de 1º de março de 2003, foi a primeira lei moderna a tratar exclusivamente da questão da posse da terra rural.

Um dos objetivos da lei foi de formalizar o mercado de arrendamento de terras rurais para viabilizar o aumento do tamanho das propriedades. Até então, os contratos de arrendamento eram informais e orais, valendo muitas vezes por apenas uma safra. A reforma que acompanhará o novo Plano Quinquenal (2016-20) tentará estimular o arrendamento para grandes grupos e empresas e acelerar o processo de concentração da produção.

A despeito do sistema formal de arrendamento estabelecido em 2003, a partir deste mesmo ano o governo chinês passou a oferecer subsídios e a comprar produtos agrícolas com preços mínimos remuneradores. Tal política não apenas estimulou o aumento da produção de grãos sucessivamente por mais de uma década, como também ajudou a segurar o produtor rural na terra com a garantia de renda.

O cuidado na administração do potencial deslocamento de dezenas, ou mesmo centenas, de milhões de pessoas do campo para a cidade levou a políticas aparentemente contraditórias. Se de um lado os subsídios seguram o produtor no campo, por outro a modernização agrícola almejada ocorre por meio de políticas que estimulam o êxodo rural, mas sem interferir no sistema hukou.

O hukou basicamente é um sistema de registro de residência que prende o indivíduo a determinada localidade. A mudança do campo para a cidade sem autorização deixa a pessoa na ilegalidade. Para se ter acesso total a escolas e hospitais nas cidades a um custo subsidiado é preciso o hukou urbano. O problema é que a alteração do hukou rural para o urbano é difícil. Uma analogia que se faz dos trabalhadores do campo que vão para a cidade sem o hukou urbano é de imigrantes ilegais nos EUA. No final das contas, a política de arrendamento que se tem procurado desenvolver acabará por criar uma grande classe de rentistas rurais nas cidades, mesmo sem a obtenção do hukou urbano.

Cabe lembrar que êxodo rural, diminuição da pobreza, modernização da agricultura não são as únicas variáveis da complicada equação chinesa, pois um país com mais de 1 bilhão de habitantes sempre estará em alerta no que se refere a segurança alimentar. Nesse sentido, o grande líder chinês Deng Xiaoping, criador do chamado comunismo de mercado, orientava o seu governo a partir do princípio de que a China deveria evitar depender de importações para satisfazer a demanda por alimentos e a importação de grãos não deveria ser superior a 10% da necessidade total. Esse princípio norteou as políticas agrícolas chinesas ao longo de meio século.

Poder-se-ia argumentar que a soja não se enquadra nesse esquema. No entanto, por mais que a produção de soja tenha se estagnado e quase toda a demanda doméstica seja garantida pelas importações, para os demais grãos, como o milho, as aquisições externas beiram apenas 3% da necessidade total.

Assim, com preços mínimos estimulantes, nos últimos 13 anos a produção chinesa de milho cresceu mais do que a demanda. O resultado final é que diversos analistas apontam que os estoques chineses de milho estão entre 200 e 250 milhões de toneladas, volume que equivale a um ano de consumo do país. Numa economia de mercado, esse excesso de oferta derrubaria os preços, que por sua vez desestimularia a produção e engendraria um aumento de preços no futuro. Os mercados agrícolas, com pouca ou nenhuma intervenção, funcionam basicamente dessa forma. Preços altos ou baixos provocam ajustes na oferta para gerar um novo equilíbrio, mas não foi isso o que aconteceu na China.

A narrativa chinesa pode soar familiar porque o Brasil fez algo muito parecido com o café durante décadas. Para garantir a renda na nossa economia primário-exportadora, o governo comprava café e queimava. Assim, os preços eram mantidos a níveis remuneradores que estimulavam ainda mais a oferta, havendo a necessidade de todo ano comprar e queimar mais café. Entretanto, a experiência brasileira difere da China atual pelo fato de que não estocávamos todo o café adquirido pelo governo.

A atual política de preços mínimos na China acabou então por gerar uma série de distorções, como a formação de um estoque gigantesco, caro de ser manter e que não reflete nos preços domésticos. O milho importado dos Estados Unidos chega à China por 1,14 yuan (US$ 0,18) o kg, enquanto que o governo paga ao produtor 2 yuanes (US$ 0,31) o kg.

Infelizmente, a indústria local não consegue recorrer ao milho importado mais barato, pois existe uma cota de importação que sobretaxa quantidades acima dela. A saída é a importação de substitutos ao milho não restritos a cotas, como o sorgo e a cevada. Estima-se que em 2015 foram importados 30 milhões de toneladas desses substitutos. O que é só mais uma das distorções do mercado.

Uma das justificativas da formação de estoques é a regulação da oferta, permitindo postergar a venda presente para garantir um preço melhor no futuro. Acontece que isso tem um custo, e o armazenamento por um período excessivamente longo pode ocasionar a perda total. Sobre esse ponto, recentemente o escritório do USDA em Pequim publicou um relatório dizendo que nos estoques chineses há, pelo menos, mais de 20 milhões de toneladas de milho que “estão tão mofados ou deteriorados que já não são adequados ao consumo humano ou animal”. Especula-se que parte desse montante ainda pode ser utilizada para a produção de etanol, mas o sinal de alerta foi ligado.

Antevendo o problema que se avoluma, não somente em relação ao milho, o governo chinês anunciou no último mês de março que os preços de todas as culturas, excetuando-se trigo e arroz, serão definidos pelo mercado. Comprar caro e vender “barato” só pode resultar em prejuízo, que no caso será absorvido pelas empresas estatais de abastecimento.

Segundo o USDA, a empresa estatal de armazenamento de grãos, China Grain Reserves Corp., ou simplesmente Sino Grain, planeja vender uma quantidade grande, mas não especificada, de milho com três anos estoque por 1.400 yuanes (US$ 216) a tonelada. Avaliando que o preço de apoio pago pelo Governo aos produtores recentemente foi estipulado em 2.000 yuanes (US$ 308) a tonelada, nessa venda haverá uma perda de 600 yuanes (US$ 92) por tonelada. O USDA estima que essa política de redução do preço de venda dos estoques de milho pode gerar perdas de até US$ 10 bilhões.

As perdas são inegavelmente altas, mas não há alternativas viáveis. A operação na verdade só consolida o prejuízo. Optar por não fazer nada e continuar com a política atual só faz com que o prejuízo não seja contabilizado, tornado a questão dos estoques uma coleção de esqueletos no armário.

Gert-Jan van den Akker, presidente da Cargill, disse recentemente no evento do Financial Times Commodities Global Summit, que existe 50% de chances de a China exportar parte dos seus estoques de milho. Considerando que os vizinhos Japão, Coreia do Sul e Taiwan estão entre os maiores importadores do cereal no mundo, a clientela já está à porta de casa. Caso as exportações chinesas ocorram, seria um baque nos preços internacionais do milho, que já estão relativamente baixos.

Porém, vale ressaltar que os preços que a Sino Grain planeja vender dos seus estoques de milho com três anos de armazenamento não são competitivos para o mercado internacional. É caro e de má qualidade. O milho dos Estados Unidos, do Brasil e da Argentina chega ao mar da China por menos de US$ 200 a tonelada. Ou seja, algo novo precisa acontecer para que essas exportações ocorram de fato. Diminuir ainda mais o preço é uma possibilidade.

Fontes da indústria alegam que além da redução dos estoques, a China planeja diminuir a área plantada e a produção de milho até 2020. Tais fontes citam propostas da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reformas, órgão de planejamento do país. O objetivo seria reduzir a produção para chegar a 175 milhões de toneladas.

O curioso é que se se confirmarem os cenários apresentados, teríamos exportações chinesas de milho derrubando os preços internacionais no curto prazo, e no médio/longo prazo veríamos a China comprar 50 milhões de toneladas do cereal, o que faria os preços alcançarem patamares nunca vistos.

O que esperar de tudo isso? É certo que a China tem desafios para confrontar, mas as informações de lá nem sempre são muito confiáveis e é difícil fazer previsões. No fim, a única certeza, como diria o falecido economista britânico John Maynard Keynes, é que no futuro estaremos todos mortos.


Guilherme Viana (MTb / MG 06566 JP)
Jornalista da Embrapa Milho e Sorgo
Tels: (31) 3027-1272 / (31) 9733-4373
gfviana@cnpms.embrapa.br

 

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